Frase do Dia

  • "Tudo o que chega, chega sempre por alguma razão"

quarta-feira, 20 de maio de 2015


Pensei que te tinha perdido. 
A ti, essa memória que em tantos momentos recordei no meu silêncio como o aviso mais poderoso e precioso dos últimos tempos.
Mas não, ontem voltaste-me e agarrei-te como se fosse a primeira vez que te recordava. 

A imagem que guardo é nítida, as palavras são simples e o cenário inesquecível:

Estava numa consulta a acompanhar uma das médicas que até hoje me surpreendeu mais pelo seu lado humano, quando a vi.
Era uma mulher alta, demasiado magra para ser saudável, coberta de rugas de sofrimento e uma calvice digna de um tratamento já duradouro de quimio.
A abordagem inicial foi a normal: abri-lhe a porta com um sorriso, disse "buenos días", indiquei-lhe a cadeira e voltei-me a sentar junto da minha tutora.
Pelo que tinha lido da história clínica e pela conversa inicial percebi que a Sra. sofria de uma doença temível (que me arrepiava só de pronunciar o nome), diagnosticada desde há uns meses e em seguimento terapêutico desde então. 
Como quase sempre acontece neste tipo de tratamentos o animo inicial de luta e vontade de vencer estava altamente abalado. Vi inclusive pela cara da médica que o prognóstico não devia ser nada bom, remetendo-se quase sempre a um sorriso amável e receptivo.
Passadas as perguntas inicias de rotina, a doente ganhou subitamente um novo brilho no olhar e  decidiu contar-nos os seus dias depois do último tratamento:

Depois do último tratamento senti-me bastante abalada, demasiado fraca e sem grande ânimo para continuar a fazer a minha vida normal. Sentia-me esgotada.
Dois dias a seguir foi o meu "cumpleaños" e pensei "Joder! Hay que celebrar un día más de vida!". Foi instantânea a reação e não fiz mais nada senão procurar os meus sapatos preferidos. Aqueles que sempre me acompanharam no que mais gosto de fazer: "Bailar". Tirei-os do armário, vesti um vestido lindo "Que guapa estaba" e desci ao piso inferior. 
Tinha-os a todos: a minha família, os meus amigos, música, comida "solo para mirar no para comer", o meu vestido lindo e os meus sapatos. Todos me olharam com receio, porque sabiam muito bem o que tinha sofrido nos últimos dias...Mas soltei o cabelo da peruca, enchi-me de força e dancei. Dancei, dancei e dancei até não poder mais. Não devo ter aguentado mais de 10 minutos, mas dancei. Senti-me viva como há muito já não me era permitido. No fim nem forças tinha para apagar as velas do bolo ou subir as escadas sozinha, mas bolas, que feliz estava com os meus 60 anos cheios de música e dança.   

O olhar que manteve durante todo este relato foi inesquecível. Repleto de um brilho de triunfo, de quem tinha vencido o sofrimento com um pequeno prazer da vida.
A sala de consulta nos minutos subsequentes ganhou uma luz incorruptível e quase que podia jurar que havia um choro uníssono de comoção entre todas.

Já no fim da consulta, despedimo-nos sem promessas de nos voltarmos a ver.
Fechei a porta e voltei-me pensativa para a minha médica que me recebeu com um sorriso.
Deixou que me sentasse ao seu lado, colocou-me a mão no ombro e disse-me:
"Mariana, nunca te olvides de respirar. Nunca te olvides del importante que es vivir e aprovechar lo que tienes"

A vida é demasiado curta para alguns, mas apenas finita para os que já não estão entre nós. 
Enquanto aqui estivermos existimos. 
Enquanto aqui estivermos somos infinitos na nossa essência e no que podemos fazer dela.  

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